Quando comecei minha primeira cadeira de tradução na faculdade, há um ano, uma das primeiras decisões que tomei foi a de instalar um dicionário no meu telefone. O Google Tradutor é um bom aliado, ainda que confiar demais nele nunca seja uma boa ideia, mas eu logo descobri que ele – ou qualquer dicionário bilíngue – nunca me bastariam. Antes de partir na (às vezes sangrenta) batalha em busca de um bom equivalente, nada melhor do que ler uma definição.
De uns tempos pra cá, talvez devido a uma atualização, o app escolhido na época, o Dictionary.com, passou a me enviar a "palavra do dia" todas as manhãs e, toda manhã, eu leio a definição, mesmo que inevitavelmente acabe esquecendo dela minutos depois. Semana passada, talvez na segunda, a palavra do dia era mistral, que eu nunca tinha ouvido ou lido antes.
Achei a experiência curiosa e, se fossem números ao invés de uma palavra, teria jogado eles na loteria. Como não eram números, valeu muito pela curiosidade – por exemplo, a de pensar que ventos específicos têm um nome, coisa em que eu nunca tinha parado para pensar, apesar de sempre ter ouvido falar do minuano. Valeu também pela sensação maravilhosa de efetivamente adicionar mais uma palavra, ou expressão, ao vocabulário. E isso, pra quem escreve – ou pra quem traduz – é sempre relevante, mesmo que na hora não pareça.
Já que eu leio pra compreender melhor a vida, vou citar outro livro que esteve me fazendo companhia por esses dias: em The Raven Boys, um Young Adult sobrenatural do qual eu ainda quero muito falar nesse blog, Richard Gansey (Terceiro), um menino extremamente privilegiado que pode fazer o que quiser da vida, passa uma quantidade considerável de tempo lendo e pesquisando (para fins particulares, mas não vem ao caso agora). Numa conversa casual sobre esse negócio com o qual ele é obcecado, que envolve antigos reis galeses e linhas espirituais pelas quais as almas dos mortos se deslocam, Gansey pondera que tem alguma coisa nessas linhas que “fortifica ou protege os cadáveres. A alma. O… animus. A sua quididade”. Para o alívio da protagonista, nas palavras do próprio texto, um terceiro menino intercede, lembrando Gansey de que ninguém sabe o que é quididade ("Tudo aquilo que faz com que uma pessoa seja o que ela é", ele explica). Na mesma conversa, esse terceiro garoto precisa lembrar o amigo de que ninguém sabe quem é Ned Kelly (um criminoso australiano). É quando Gansey parece tão inocentemente surpreendido pelo fato de Ned Kelly não ser conhecimento compartilhado por todos que a protagonista percebe que o menino nunca teve a intenção de ser condescendente com ninguém.
É só uma passagem do livro (ainda que ela reapareça, com algumas variações, em outros momentos), mas não consegui esquecer dela porque nunca antes na vida me identifiquei tanto com uma criatura meio prodigiosa e extremamente privilegiada. Não que eu saia por aí falando sobre quididade (dicionarizada, mas eu nunca tinha ouvido falar) ou incluindo expressões em latim nas minhas conversas, mas já ouvi que a vida não era uma dissertação do vestibular.
Só que não se trata de usar palavra nenhuma com a finalidade de impressionar ninguém – nem mesmo nos meus trabalhos acadêmicos (só vou atrás de sinônimos se as repetições realmente estão passando dos limites) – mas porque, às vezes, depois que você aprende uma expressão e qual é o sentido dela, nenhuma outra que você conhecia antes parece funcionar tão bem. Uma das primeiras discussões que me lembro de ter tido no curso de Letras foi sobre sinônimos e, quanto mais penso nela, mais sentido parece fazer: não existem sinônimos perfeitos porque, se duas palavras expressassem exatamente o mesmo sentido, não haveria razão para que as duas existissem.
Daí me lembra a minha insistência irredutível, lá na Tradução do Inglês I, quando trabalhávamos um texto sobre a transferência das tribos de indígenas americanos para o Território Indígena no Oklahoma, em traduzir "the numinous sensation" por "a sensação numinosa". Mas ninguém nunca ouviu falar em numinoso. Nem em numinous, eu diria.
Talvez seja coisa minha, que aprendi a amar as palavras e a admirar o ritmo de uma frase, o modo de descrever coisas mundanas quase como se fossem sublimes, mas eu duvido muito, considerando que 330 mil pessoas escolheram compartilhar ou salvar o significado de cafuné nos seus Tumblrs, por exemplo. E se eu puder dizer cafuné ao invés de "correr os dedos pelo cabelo de alguém que se ama", eu provavelmente vou ficar com a primeira opção. Ainda que precise explicar o que quis dizer. Ainda que faça alguém ir até o dicionário.
Palavras são um tipo de riqueza também. Talvez faça parte reconhecer que você é privilegiado. Você certamente pode utilizá-las pra assegurar sua posição mais alta na hierarquia, se quiser. Não é – e, espero, nunca vai ser – o meu desejo. Mas que coisa linda poder dizer, na minha hipotética narrativa que se passa no Sul do Brasil, que soprava o Minuano, e, naquela que se passa no Sul da França, que soprava o Mistral. Porque certamente esses ventos não são iguais. Se fossem, não precisariam de palavras que os diferenciassem. Cada um deles, tenho certeza, faz tão parte do contexto em que existem quanto outras características. Tipo a população. Ou as árvores. Ou o que quer que seja. E é pra isso que as palavras existem. É praticamente nosso dever utilizá-las vez que outra, pra não deixar que elas sejam esquecidas.
Às vezes, aprender uma palavra nova é quase uma experiência numinosa. Quer dizer, quais são as chances? Um aplicativo te envia ela pela manhã e, pela tarde, ela aparece duas vezes, de surpresa, no meio do livro que você estava lendo?
Tem que ter um pouquinho de sobrenatural nisso.
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(adj.) que descreve uma experiência que te deixa temeroso, mas fascinado,
intimidado, mas atraído – o sentimento poderoso e pessoal de ser subjugado e inspirado
Fonte: x
De uns tempos pra cá, talvez devido a uma atualização, o app escolhido na época, o Dictionary.com, passou a me enviar a "palavra do dia" todas as manhãs e, toda manhã, eu leio a definição, mesmo que inevitavelmente acabe esquecendo dela minutos depois. Semana passada, talvez na segunda, a palavra do dia era mistral, que eu nunca tinha ouvido ou lido antes.
mistralsubstantivo 1. um vento frio, seco, setentrional, comum no sul da França e em regiões vizinhas.O mistral é um vento que sopra do sul da França para o Mediterrâneo. Não teria nada demais nessa palavra, exceto que, por coincidência ou destino, dependendo de como você interpreta a situação, mais tarde naquele mesmo dia eu lia Esta valsa é minha, romance semiautobiográfico da Zelda Fitzgerald (a esposa do Scott, essa mesma). No livro, em determinado momento, os personagens vão viver na Riviera Francesa. Duas vezes, naquele mesmo dia, li o narrador do romance falando no tal do mistral que soprava.
Achei a experiência curiosa e, se fossem números ao invés de uma palavra, teria jogado eles na loteria. Como não eram números, valeu muito pela curiosidade – por exemplo, a de pensar que ventos específicos têm um nome, coisa em que eu nunca tinha parado para pensar, apesar de sempre ter ouvido falar do minuano. Valeu também pela sensação maravilhosa de efetivamente adicionar mais uma palavra, ou expressão, ao vocabulário. E isso, pra quem escreve – ou pra quem traduz – é sempre relevante, mesmo que na hora não pareça.
Já que eu leio pra compreender melhor a vida, vou citar outro livro que esteve me fazendo companhia por esses dias: em The Raven Boys, um Young Adult sobrenatural do qual eu ainda quero muito falar nesse blog, Richard Gansey (Terceiro), um menino extremamente privilegiado que pode fazer o que quiser da vida, passa uma quantidade considerável de tempo lendo e pesquisando (para fins particulares, mas não vem ao caso agora). Numa conversa casual sobre esse negócio com o qual ele é obcecado, que envolve antigos reis galeses e linhas espirituais pelas quais as almas dos mortos se deslocam, Gansey pondera que tem alguma coisa nessas linhas que “fortifica ou protege os cadáveres. A alma. O… animus. A sua quididade”. Para o alívio da protagonista, nas palavras do próprio texto, um terceiro menino intercede, lembrando Gansey de que ninguém sabe o que é quididade ("Tudo aquilo que faz com que uma pessoa seja o que ela é", ele explica). Na mesma conversa, esse terceiro garoto precisa lembrar o amigo de que ninguém sabe quem é Ned Kelly (um criminoso australiano). É quando Gansey parece tão inocentemente surpreendido pelo fato de Ned Kelly não ser conhecimento compartilhado por todos que a protagonista percebe que o menino nunca teve a intenção de ser condescendente com ninguém.
É só uma passagem do livro (ainda que ela reapareça, com algumas variações, em outros momentos), mas não consegui esquecer dela porque nunca antes na vida me identifiquei tanto com uma criatura meio prodigiosa e extremamente privilegiada. Não que eu saia por aí falando sobre quididade (dicionarizada, mas eu nunca tinha ouvido falar) ou incluindo expressões em latim nas minhas conversas, mas já ouvi que a vida não era uma dissertação do vestibular.
Só que não se trata de usar palavra nenhuma com a finalidade de impressionar ninguém – nem mesmo nos meus trabalhos acadêmicos (só vou atrás de sinônimos se as repetições realmente estão passando dos limites) – mas porque, às vezes, depois que você aprende uma expressão e qual é o sentido dela, nenhuma outra que você conhecia antes parece funcionar tão bem. Uma das primeiras discussões que me lembro de ter tido no curso de Letras foi sobre sinônimos e, quanto mais penso nela, mais sentido parece fazer: não existem sinônimos perfeitos porque, se duas palavras expressassem exatamente o mesmo sentido, não haveria razão para que as duas existissem.
Daí me lembra a minha insistência irredutível, lá na Tradução do Inglês I, quando trabalhávamos um texto sobre a transferência das tribos de indígenas americanos para o Território Indígena no Oklahoma, em traduzir "the numinous sensation" por "a sensação numinosa". Mas ninguém nunca ouviu falar em numinoso. Nem em numinous, eu diria.
numinosoadjetivo 1. pertencente ou relativo ao nume; espiritual ou sobrenatural. 2. que ultrapassa a compreensão ou o entendimento; misterioso. 3. que desperta sentimentos elevados de dever, honra, lealdade, etc.Por que não divino, por que não sublime? Porque é diferente. Porque divino sugere Deus (o das religiões cristãs) e é necessariamente religioso, porque sublime pode também sugerir alto grau de excelência. A sensação era numinosa, não divina, não sublime. Tive de procurar a palavra no dicionário e não era meu papel evitar que um leitor do texto precisasse fazer o mesmo.
Talvez seja coisa minha, que aprendi a amar as palavras e a admirar o ritmo de uma frase, o modo de descrever coisas mundanas quase como se fossem sublimes, mas eu duvido muito, considerando que 330 mil pessoas escolheram compartilhar ou salvar o significado de cafuné nos seus Tumblrs, por exemplo. E se eu puder dizer cafuné ao invés de "correr os dedos pelo cabelo de alguém que se ama", eu provavelmente vou ficar com a primeira opção. Ainda que precise explicar o que quis dizer. Ainda que faça alguém ir até o dicionário.
Palavras são um tipo de riqueza também. Talvez faça parte reconhecer que você é privilegiado. Você certamente pode utilizá-las pra assegurar sua posição mais alta na hierarquia, se quiser. Não é – e, espero, nunca vai ser – o meu desejo. Mas que coisa linda poder dizer, na minha hipotética narrativa que se passa no Sul do Brasil, que soprava o Minuano, e, naquela que se passa no Sul da França, que soprava o Mistral. Porque certamente esses ventos não são iguais. Se fossem, não precisariam de palavras que os diferenciassem. Cada um deles, tenho certeza, faz tão parte do contexto em que existem quanto outras características. Tipo a população. Ou as árvores. Ou o que quer que seja. E é pra isso que as palavras existem. É praticamente nosso dever utilizá-las vez que outra, pra não deixar que elas sejam esquecidas.
Às vezes, aprender uma palavra nova é quase uma experiência numinosa. Quer dizer, quais são as chances? Um aplicativo te envia ela pela manhã e, pela tarde, ela aparece duas vezes, de surpresa, no meio do livro que você estava lendo?
Tem que ter um pouquinho de sobrenatural nisso.

(adj.) que descreve uma experiência que te deixa temeroso, mas fascinado,
intimidado, mas atraído – o sentimento poderoso e pessoal de ser subjugado e inspirado
Fonte: x