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Channel: Erro de Continuidade
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"O mundo era tão grande!"

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Lembrei-me de que era segunda-feira. E estava na hora do rush– por isso a estação estava tão cheia. À minha volta, na plataforma, as pessoas passavam ou se detinham em um lugar para esperar [...] Toda essa gente. Eram tantos! [...] O que tinham feito durante as últimas quatro horas? Suas vidas não tinham absolutamente nada a ver com a Ault. É verdade que eu estava de ressaca pela primeira vez, e ainda era ingênua o bastante para saber o que era uma ressaca. Mas essas pessoas começavam seu dia, todos os seus encontros, incumbências e obrigações. E isso somente ali, nessa estação, nesse momento. O mundo era tão grande! A intensidade dessa percepção desapareceu assim que embarquei no trem, mas retornou ao longo dos anos, e mesmo hoje, às vezes [...] posso sentir de novo como fiquei abismada nessa manhã. (Preliminar: os altos e baixos de Lee Fiora– Curtis Sittenfield; tradução: Ana Luiza Dantes Borges)
Preliminar foi para mim um daqueles livros que a gente lê cedo demais e depois fica para sempre se perguntando se foi por isso que não gostou. Li aos quinze porque ele foi publicado pelo selo jovem da Record (lembro da vendedora da livraria comentando que ele não era vendido na seção jovem da loja), mas eu não o considero um young adult e não indicaria para alguém com pretensões de ler um YA. Até porque, embora a idade da protagonista seja certa pro gênero, e também a ambientação (um internato), o livro é claramente narrado por ela anos depois de tudo aquilo ali. O livro foi lento, não tem exatamente um enredo, a protagonista sofre muito de ansiedade e se autosabota o tempo inteiro, tem algumas situações bem pesadas no meio. Eu tinha entrado há pouco no ensino médio quando li, mas, mesmo depois, minha passagem por ele foi bem mais leve, com muito menos drama. Não tinha nada de identificável para mim ali, e eu não consegui apreciar a narrativa que deixava muito mais um gosto amargo do que qualquer outra coisa.

O parágrafo anterior poderia ser uma introdução para uma resenha escrita com base em uma releitura, que poderia acabar concluindo que: a) eu era muito nova quando li, foi no momento errado – e só agora eu conseguiria apreciar livro; b) eu só não gostei mesmo. Mas não é nada disso, porque não reli e, por enquanto, não pretendo. O primeiro parágrafo está ali só pra eu poder dizer que aquela citação que encabeça o texto não vem de uma obra da qual eu gosto atualmente, ou com a qual eu tenho alguma conexão em particular. A verdade é que não me lembro de tanta coisa sobre o livro (talvez valha a releitura, afinal), mas nunca me esqueci daquela passagem que, desculpem o eventual spoiler, é como o livro termina e pra mim é um daqueles finais extremamente poderosos.

Já usei parte dessa citação em um post antes, num blog que eu escrevia lá nos meus próprios quinze anos, justamente porque ela foi um final marcante e impactante, mas principalmente porque e é um momento da vida da Lee Fiora com o qual foi extremamente fácil de me conectar, de me identificar. Preliminar narra os quatro anos do ensino médio da personagem, que recebe uma bolsa para estudar em um internato conceituadíssimo. Assim, a experiência dela é espacialmente restrita – praticamente toda a ação se passa no campus da Ault. Lee tem muitos momentos ruins, e todos eles acontecem dentro da escola e estão relacionados a pessoas que ela conhece por meio da escola. Mas ela também tem suas pequenas alegrias, seus momentos de euforia – mesmo que fossem só por estar avançando em um jogo promovido pela escola, envolvendo todos os estudantes –, e eles também se passam lá. Ela vive confinada a um único espaço físico durante praticamente o tempo inteiro durante quatro anos.

Na cena final, Lee está - não me lembro bem em quais circunstâncias - numa estação de trem e ela para pra reparar em uma porção de pessoas das mais comuns, que a gente vê todo dia na rua: executivos, mães com suas crianças, adolescentes ouvindo música. E é um momento fantástico, porque ela sente uma espécie de euforia porque percebe que "o mundo era tão grande!", e que nenhuma daquelas pessoas estava relacionada ao mundo dentro do qual ela vivia.

Um internato sempre parece divertido quando a gente lê Harry Potter, mas no mundo real, acho que não, não gostaria de estudar em um, obrigada. O internato é uma boa representação do pequeno espaço confinado em que às vezes vivemos e que acabamos enxergando como se fosse todo o universo. Duvido que alguém precise ter realmente estudado ou vivido em um para conseguir sentir alguma identificação com Lee Fiora em sua pequena epifania da estação de trem.

De vez em quando, mesmo que raramente, isso acontece comigo. Domingo passado saí para almoçar; estava de carona e pude observar o caminho que nunca tinha feito antes, as ruas eram todas estranhas. Ruas de bairro, calmas, com mais casas do que prédios de dez andares. E, do nada, tive aquela sensação: todas aquelas casas cheias de gente que eu nunca conheci, e talvez – provavelmente, na verdade – nunca venha a conhecer. Talvez eu já tenha topado com muitos desses desconhecidos no ônibus, nas ruas apinhadas de gente do centro, na mesma sessão de cinema da qual eu saí tão maravilhada... Ou, talvez – de novo, provavelmente – não. Mas isso é o que menos importa. Porque o mundo é mesmo tão grande. Eu não consigo mensurar o um milhão e meio de pessoas que moram aqui, na mesma cidade, tão perto. Eu não consigo nem imaginar o que são sete bilhões de pessoas.

Sete bilhões de pessoas para quem eu não significo nada, absolutamente nada. Que não sabem nada sobre mim, ou que eu existo, que não têm expectativas quanto ao meu futuro, para quem eu não passo de uma pequena parte de um número enorme. E se isso não é maravilhoso, eu não sei o que mas é. A gente não precisa viver espacialmente confinada para às vezes se sentir presa: seja às expectativas (as nossas e as das outras pessoas) e noções pré-concebidas, seja às nossas responsabilidades, seja à nossa rotina e aos caminhos de todos os dias que a gente precisa pegar, à mesma linha de ônibus na qual a gente anda, às mesmas pessoas com quem a gente conversa, ou com quem a gente não conversa, mas vê de longe e reconhece.

Mas tem sete bilhões de pessoas lá fora; sete bilhões de possibilidades, espalhadas por não sei quantos lugares diferentes em um planeta imenso que, infelizmente, a gente nunca, nem com todo o esforço, vai conseguir conhecer por inteiro.

Assim como a euforia de Lee Fiora, a minha eventualmente, passou. Eu almocei, conversei com as mesmas pessoas, voltei pra casa e a vida seguiu. Daí ontem comecei a ler Someday, someday, maybe, o livro da nossa eterna Lorelai Gilmore, a Lauren Graham (que, por sinal, foi indicação da Mell, e fico feliz de dizer que estou adorando) e me deparei com isso aqui, no finzinho do capítulo dois:
É só uma superstição, mas olhar para o rio, para os barcos, para o letreiro na saída do Brooklyn que diz “Watchtower” em grandes letras vermelhas, é um ritual que me lembra de que sou pequena, uma entre milhares – não, milhões de pessoas que olharam para esse rio antes de mim, de um barco ou de um carro ou da janela do trem D, que vieram para Nova York com um sonho, que o realizaram ou não, mas que, contudo, fizeram o mesmo esforço que estou fazendo agora. Isso mantém as coisas em perspectiva e, estranhamente, me dá esperança (Someday, someday, maybe– Lauren Graham).
E concordei com a Franny, a narradora do livro. Acho que ela me entenderia. Porque lembrar que sou uma em milhares, uma em bilhões realmente mantém as coisas em perspectiva e também me dá esperança. Eu nunca quis ser o centro do mundo ou um special snowflake e sempre vou achar fantástico lembrar que, não importa qual seja o esforço que eu estou fazendo no momento, outras pessoas já o fizeram antes de mim, e muitas outras ainda vão fazê-lo, e isso é extremamente reconfortante e, sabe, bonito. Que bom que o mundo é tão grande.

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